quarta-feira, 28 de fevereiro de 2007

você sente o cheiro do cu do povo?

Tiago Nery

O carnaval de Salvador certamente renderia a Castro Alves uma bela temática de estudo e escrita. Castro Alves foi um baiano abolicionista, um mestre com honras cabíveis pela poesia que produziu. Navio Negreiro é de seus poemas mais extensos e mais belos; rico, plural, doloroso e baiano; quase como o nosso carnaval, quase como os negros (tema principal do poema) no carnaval... Nos traz versos quase contemporâneos e recheia meu texto com sapiência, com estrofes que parecem ter fotografado o carnaval que pula-se com tanta orgasmo e transformado-as no meu objeto de consumo preferido: palavras (dita, escrita, mediada...). Como a elite, em pleno século XXI (homens pós-modernos), quase a mesma do séc. XVIII, que desconhece a não-tênue questão social entre negros e brancos e pobres e ricos em que vivemos.


Era um sonho dantesco...
O tombadilho
Que das luzernas avermelha o brilho.
Em sangue a se banhar. Tinir de ferros...
Estalar de açoite...
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar...

Negras mulheres, suspendendo às tetas
Magras crianças, cujas bocas pretas
Rega o sangue das mães:
Outras moças, mas nuas e espantadas,
No turbilhão de espectros arrastadas,
Em ânsia e mágoa vãs!


Houve o tempo em que o carnaval era democrático (quase, porque em um sistema capitalista nada é democrático, muito menos a política). Houve flexões no sistema de brincar o carnaval na Bahia. Se antes só não ia atrás do trio quem morreu, (porque o trio elétrico conduzia o povo) agora só vai quem pode pagar... E quem pode pagar caro. O mais impressionante é que o circuito Barra-Ondina, lançado pela “engajada” embaixadora do UNICEF, Daniela Mercury, é prioritariamente para a classe média e classe média alta. O povo participa; os pobres, pretos, “feios” e desdentados estão lá também, mas como sempre, às margens, no sentido semântico da palavra e arquitetônico do espaço.


E ri-se a orquestra irônica, estridente...
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais...
Se o velho arqueja, se no chão resvala,
Ouvem-se gritos... o chicote estala.
E voam mais e mais...

Presa nos elos de uma só cadeia,
A multidão faminta cambaleia,
E chora e dança ali!
Um de raiva delira, outro enlouquece,
Outro, que martírios embrutece,
Cantando, geme e ri!

BRANCÃO - Eu estava na Barra, quinta-feira de carnaval, passeando pela pipoca, vendo o movimento, observando os transeuntes e vendo como os negros estavam sendo tratados na capital mais negra do mundo. Capital que espalha fotos ridículas, de um fotografo pífio pela cidade inteira; dizem que o objetivo é o resgate da cultura negra... Faz-me rir: gastam mais de 3 milhões de reais e só me remete à incompetência generalizada, crônica e aguda (como esse dinheiro não poderia ter sido usado...). Como todo brasileiro, nordestino e baiano, sou fruto miscigênico, mas as heranças européias predominam. Sou união de Barletta com Ribeiro com Cetraro com Nery e até da Silva acha na minha família... Minha avó era índio-descendente; tenho uma mãe quase índia com pele clara, um pai quase italiano e sai moreno dos cabelos lisos...

No entanto o capitão manda a manobra,
E após fitando o céu que se desdobra,
Tão puro sobre o mar,
Diz do fumo entre os densos nevoeiros:
"Vibrai rijo o chicote, marinheiros!
Fazei-os mais dançar!..."

E ri-se a orquestra irônica, estridente...
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais...
Qual um sonho dantesco as sombras voam!...
Gritos, ais, maldições, preces ressoam!
E ri-se Satanás!...


A minha árvore genealógica tinha que estar aqui para tentarmos entender o porquê fui tanto tratado como gringo quando circulei pela pipoca. Os gringos, os de verdade, estavam como sempre curtindo a folia sem maiores preocupações, havia policiais olhando por eles... Quando cheguei a algum pra entrevistar, em inglês, percebi que os vendedores ambulantes começavam a fazer qualquer coisa pra chamar a minha atenção. Resolvi travar diálogo com um deles: “oi, beleza? Você tá achando que eu sou gringo, é?”, perguntei a Anderson, 19, vendedor de cerveja... “Só pode, véi... Esse cabelo, essa cara de gringo, todo brancão... Compre uma gelada aí, véi...”. Anderson me diz que se a polícia tiver que bater em mim ou nele, certamente baterá nele... Mesmo que esteja trabalhando assim como eu também estava...

Já passamos por algumas formas de carnaval. Da segunda metade do século XX para cá, chegaram os trios elétricos que romperam com a festa elitizada dos clubes e mansões. Só que hoje, o trio elétrico é quem atende à elite. Com o passar do tempo, esse trio foi transformado em mercadoria e instrumento de ganho de grana. Então nasceu a corda para cercá-lo, surgiram os blocos pagos, acentuou-se as disparidades sociais... Hoje, ainda é um modelo em crise. Não tem mais como avançar e ele continua excluindo cada vez mais...


Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura... se é verdade
Tanto horror perante os céus?!
Ó mar, por que não apagas
Co'a esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?...
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!

Quem são estes desgraçados
Que não encontram em vós
Mais que o rir calmo da turba
Que excita a fúria do algoz?
Quem são? Se a estrela se cala,
Se a vaga à pressa resvala
Como um cúmplice fugaz,
Perante a noite confusa...
Dize-o tu, severa
Musa, Musa libérrima, audaz!...


NAVIO NEGREIRO - Dentro do cercado, claramente delimitando quem é quem; seja pelo abadá, seja pela pele... Sempre a salvo, protegida, a maioria branca domina. Nas cordas estão os negros. São eles os responsáveis por provocar um paradoxo visual; separar os brancos dos outros negros — que permanecem fora da área limitada ao bloco e, originalmente, são a alma, a cor, o ritmo, as cores, a beleza e feiúra, alegria e tristeza, o sossego e o terror, a paz e a violência do carnaval. O lugar destinado à maioria é, literalmente, à margem da festa, fora das cordas, onde a violência é uma constante — fruto de uma tensão social, da convulsão que vivemos disfarçando e que, simplesmente, não sumiria porque “é carnaval”.

Mesmo assim sobra espaço para a alegria. Disso não há dúvidas, e ela não é pouca, vem das mais variadas formas, mas vem. Talvez a euforia, ou o comodismo, impeça-nos de olhar para o outro lado e ver o que segrega, o que aparta, o que aumenta a distância já tão grande, inclusive, claro, fora da folia. Desta vez, não há bairros, não há carros ou roupas que digam: eu sou elite e você, não. É o mesmo espaço, o ritmo, a cidade, a alegria, o medo e a segurança que o negro cede ao branco (parênteses para quanto se paga por esse serviço quase escravo: 15 reais, água, pão, bolachas de chocolate; luvas e raramente protetores auriculares). A corda nas mãos negras separa as pessoas e vomita em nossas fuças a enorme desigualdade brasileira, principalmente soteropolitana, cidade prioritariamente negra, que faz questão de escondê-los em bairros pobres longe da badalada orla. Apartheid tão real que nem a alegria de um carnaval consegue unir.


São os filhos do deserto,
Onde a terra esposa a luz.
Onde vive em campo aberto
A tribo dos homens nus...
São os guerreiros ousados
Que com os tigres mosqueados
Combatem na solidão.
Ontem simples, fortes, bravos.
Hoje míseros escravos,
Sem luz, sem ar, sem razão...

São mulheres desgraçadas,
Como Agar o foi também.
Que sedentas, alquebradas,
De longe... bem longe vêm...
Trazendo com tíbios passos,
Filhos e algemas nos braços,
N'alma — lágrimas e fel...
Como Agar sofrendo tanto,
Que nem o leite de pranto
Têm que dar para Ismael.


CONTRACULTURA – O espetáculo do carnaval, não menos ridículo que a exclusão sempre presente em Salvador, foi a atitude de completo elitismo do camarote de Gilberto Gil, comandado por sua mulher, Flora Gil. O slogan do Expresso 2222 dizia: "Camarote 2222/Aqui é o novo endereço/torça para ser convidado/até olhar de fora vale a pena". Quem foi e quem é o nosso ministro Gil, um dos mentores da contraculturw baiana, aquele mesmo que trabalha num Governo Federal (poderia eu dizer que trabalha para nós?) em que a frase rápida de fácil entendimento e mais fácil aceitação ainda é: "Brasil, um País de Todos/Governo Federal". Que já andou disparando por aí: "Sou brasileiro e Não Desisto Nunca". Não precisamos sequer ir muito longe, aqui pertinho mesmo, em Salvador; a Prefeitura sugere ser de: Participação Popular.

Nesse caso, de completa alienação e dominação, é justo citar Carlinhos Brown, que também fala em apartheid na festa; ele, que, depois de alcançar sucesso, lasca o verbo com quem pisou nele: a elite. Depois do Camarote Andante (paradoxal a idéia e, com certeza, não menos proposital), este ano a novidade da festa é o Bloco Pipocão. Em um Carnaval que caminha acentuando cada vez mais as desigualdades entre as pessoas que nele estão, qualquer iniciativa que lembre dos sem abadás e sem camarote - logo, a não-elite - soa como forma de “burlar” o sistema comercial da festa e serve para distinguir artista de mero cantor de bloco ou de trio e ministro de mero coadjuvante passivo. Mas, já que é Carnaval, mais uma vez vamos fazer de conta que tudo é festa, que ano que vem melhora, que “faz parte”, que é culpa de Lula...

BANDEIRA EMPRESTADA: Ninguém melhor do que Castro Alves, repito: tão distante e tão contemporâneo, pra finalizar a análise dos negros ou pobres ou sem abadás ou tudo junto do carnaval soteropolitano. Somos o povo que empresta a bandeira que cobre a infâmia e covardia, que transforma tudo em festa e que contesta a bandeira quando nos falta... Silenciamos, passíveis de uma aliteração numa estrofe que fala de Brasil, brisa, beijo e balanço. Pois é, quase como o carnaval, quase como um navio negreiro...

Existe um povo que a bandeira empresta
P'ra cobrir tanta infâmia e cobardia!...
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!...
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?
Silêncio. Musa... chora, e chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto!...


Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra
E as promessas divinas da esperança...
Tu que, da liberdade após a guerra,
Foste hasteado dos heróis na lança
Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!...